Queremos fugir de dogmas na economia, diz ministro da Casa Civil

Rui Costa afirma que marcos serão revistos para ampliar investimentos privados

Sobre o móvel instalado ao canto do amplo gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto, repousa o único objeto pessoal que o novo ministro da Casa Civil, Rui Costa, já levou para a sua nova sala de trabalho: a espada que ganhou da Polícia Militar da Bahia depois de empossado governador, a qual simbolizava que as forças de segurança do Estado tinnham um novo comandante em chefe. Mas Costa brincava, durante entrevista exclusiva ao Valor, que foi o extintor de incêndio que precisou utilizar nas primeiras horas de governo devido a declarações de um ou outro colega de Esplanada que assustaram o mercado.

Costa rechaçou as críticas daqueles que questionaram se o governo Lula 3 iniciara na contramão do prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha eleitoral: respeito aos contratos, previsibilidade e estabilidade. Chamou-as de “absoluto excesso e precipitação”, uma vez que não teve ato concreto do governo que justificasse essas preocupações. “O que nós queremos fugir é de dogmas, seja da extrema esquerda ou de extrema direita”, sublinhou.

Segundo ele, a determinação do presidente é ampliar ao máximo as possibilidades de investimento, público e privado. Sobre a decisão de prorrogação da desoneração de tributos sobre combustíveis, que na visão de agentes do mercado expôs o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Costa disse que prevaleceu o argumento segundo o qual medida no sentido contrário poderia gerar um “repique” na inflação.

Costa afirmou que a intenção do governo é “trabalhar” para que os juros possam cair. Mas, perguntado como seria o arcabouço fiscal, evitou detalhar propostas para reduzir despesas e destacou a importância de garantir a qualidade dos gastos. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: O mercado reagiu com preocupação aos primeiros desencontros do governo. Há quem diga que alguns episódios contrastam com as promessas de respeito a contratos, estabilidade e previsibilidade. Qual a sua avaliação sobre isso?

Rui Costa: Achei absoluto excesso e precipitação. Meia-noite de hoje [quinta-feira] completamos 72 horas de governo, não tem nenhum ato materializado em decreto ou lei que justifique isso. Nada que vá na contramão da previsibilidade, da segurança jurídica. Todas as medidas que estão sendo pensadas e vão ser discutidas com atores sociais e econômicos buscam alargar as possibilidades do mercado atuar e não restringir. Aquilo que não signifique abertura é o que ele já anunciou na campanha, de que não iria privatizar o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, os Correios, a Petrobras. Não há motivo para sobressalto.

Valor: Mas e a medida provisória que tratou da Agência Nacional de Águas e da política de saneamento?

Rui Costa: A atribuição da ANA é apenas definir diretrizes [sobre saneamento]. E isso, na minha opinião, beira a inconstitucionalidade porque o poder de concessão não é do governo federal, é dos Estados e municípios. O papel da ANA, do ponto de vista do saneamento, é muito superficial, não é capaz de mexer no volume de investimentos que as concessões podem atrair.

Valor: Mas o governo pretende fazer alterações no novo marco legal do saneamento…

Costa: Nós vamos fazer ajustes neste regramento, mas não é para restringir, é para ampliar a possibilidade de investimentos. Tem a lei que foi votada e, posteriormente, foram editados vários decretos que tornaram mais restritiva a capacidade de incorporar investimento privado através de outras modelagens que não seja a concessão total. Na área de saneamento e de água, temos vários formatos de contratos para atrair a iniciativa privada: a concessão total, a subconcessão, a concessão parcial, a concessão regional, as Parcerias Público-Privadas (PPPs). Isso depende do produto a ser oferecido.

Valor: Vai haver debate com empresários do setor?

Costa: Vamos fazer uma reunião com o setor privado e com as empresas estaduais em janeiro para negociar uma nova redação de decreto regulamentador, que todos entendam que estimule e amplie o ritmo de investimentos. Não queremos restringir, queremos ampliar. Nenhuma medida será adotada no sentido de revisar o que era previsibilidade de investimento privado.

Valor: Então essas mudanças na lei não passarão pelo Congresso?

Costa: A principio não, só se tiver um detalhe ou outro que seja fruto de consenso dessas reuniões. O que conduzirá a nossa ação e decisão será destravar investimentos.

Valor: Então o governo vai agir para acalmar os agentes do mercado e os investidores?

Costa: O que nós queremos é fugir de dogmas, seja da extrema esquerda ou da extrema direita. A economia não é dada a encontrar soluções com dogmas. O mercado não tem por que se assustar. A orientação e a determinação do presidente é ampliar ao máximo as possibilidades de investimento. Teremos investimento público direto, como as obras do Minha Casa, Minha Vida [MCMV], investimento 100% privado e um misto entre os dois. Tem um leque de possibilidades.

Valor: O senhor citou os modelos de contratos para obras de saneamento. E para outras áreas?

Costa: Vamos coordenar aqui o PPI [Programa de Parcerias de Investimentos] de mobilidade urbana, portos e aeroportos, ferrovias. Nessa área de transporte, é possível a adesão para projetos de concessão e, eventualmente, de PPP. Na transição, a gente poderia ter suspendido o leilão do metrô de Belo Horizonte, mas a posição do presidente foi de manter o leilão. Não tem solução padrão. Para cada tipo de projeto, para cada região, você vai analisar se o projeto fica de pé. Sou contra soluções nacionais para tudo. O que queremos é flexibilidade para várias modelagens de contratos e não apenas uma modelagem.

Valor: Como vai funcionar a coordenação do PPI, que voltará à Casa Civil?

Costa: Nós coordenamos o programa, a execução é em cada pasta para que a gente consiga alcançar cronogramas e prazos. Eu tomei a decisão de levar a nossa equipe para cada ministério. A partir de segunda-feira, eu, os secretários e os técnicos da Casa Civil vamos fazer visitas a vários ministérios. Junto com eles, vamos definir as ações prioritárias de obras públicas, as possibilidades de parceria com o setor privado, tendo como diretriz central o programa de governo. Faremos uma rodada em duas semanas com todos os ministérios. Depois faremos um resumo para homologação do presidente. Até o início de fevereiro, teremos o esboço do que vamos monitorar.

Valor: É a versão “Rui Correria”, como o senhor ficou conhecido na Bahia, para 2023? Em vez de visitar municípios, o senhor visitará os ministérios?

Costa: É o meu estilo, gosto de ir in loco. Mas também é uma mudança de conceito, de como fazer as coisas fluírem mais rapidamente. Essas visitas aos ministérios são demonstrações de que estamos juntos, de que é um trabalho de equipe. Só alcançaremos sucesso se todos estiverem engajados. É como no esporte.

Valor: Como assim?

Costa: Comparando com o esporte, você pode ter um monte de craques na seleção, mas não ganhará nenhuma Copa se cada craque quiser aparecer sozinho. Na última Copa, o maior craque da nossa seleção deixou para bater o pênalti por último porque queria aparecer na foto como autor do gol que levou o Brasil para a outra fase e acabou nem batendo o pênalti. A Argentina fez o contrário, pegou o maior craque para bater o primeiro pênalti e ganhou a Copa do Mundo. É o espírito coletivo que a gente quer consolidar. Mas, isso não significa abrir mão de cobranças.

Valor: O senhor fala em não ter dogmas, em ampliar os leques para investimentos. Mas no PT tem muita gente com pensamento radical. Vai ser fácil alcançar esse equilíbrio na frente ampla com a qual o presidente Lula quer governar?

Costa: Nada é fácil, na minha vida sempre foi tudo muito difícil. E neste momento em particular do Brasil, não será fácil. Saímos da eleição com um país muito polarizado, um governo muito desmontado. Por isso a minha surpresa e quase indignação com os agentes do mercado, porque tivemos quatro anos de desgoverno e a gente não via essa inquietação do mercado. Qual o planejamento de infraestrutura que foi feito neste país, qual a grande obra pública ou de concessão? As estradas estão um caos. No ano passado, foi o menor orçamento do Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes], igual ao de 2014. As dificuldades serão muitas, mas o presidente acertou ao escolher o lema do governo: “União e Reconstrução”. Nossa tarefa será unir o país outra vez e reconstruir tudo. Não tem nada aqui, eu não encontrei nem internet funcionando no gabinete. Não temos medo de trabalho. Ao contrário: eu trabalho muito e ouvindo todo mundo, quem pensa na extrema esquerda, quem pensa na extrema direita e não nos deixando intimidar por ninguém que seja extremista. Ouviremos, mas não seremos prisioneiros de falas extremas.

Valor: Como está a proposta de converter parte das dívidas das empreiteiras, firmadas nos acordos de leniência, em prestação de serviços para concluir obras paralisadas?

Costa: Fizemos a primeira reunião hoje [quinta-feira] com a Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU), representante do Tribunal de Contas da União (TCU) para delinear caminhos. A ideia é fazer um projeto piloto como teste e chamar outros atores como Ministério Público e Poder Judiciário para participar. Seria algo feito com transparência, monitoramento e acompanhamento de todos, para conseguirmos dedicar recursos para obras de forte cunho social, como creches e escolas, que estão paralisadas. Vai ser um ganho para a sociedade se a gente concluir o mais rápido possível essas obras com esses recursos que estão para serem pagos ao longo de anos.

Valor: A AGU já tem uma estimativa dos recursos que podem ser revertidos para esse projeto?

Costa: O valor total dos acordos de leniência é de R$ 17 bilhões, já foram pagos R$ 7 bilhões, faltam cerca de R$ 10 bilhões. Mas parte desse valor de R$ 10 bilhões é de ressarcimento a empresas estatais e não poderão entrar nesse projeto porque não pertencem ao Orçamento-Geral. Nós ficamos de precisar exatamente o quantitativo que cabe às empresas públicas e o que cabe ao governo. Tem acordos que foram feitos pela CGU e outros, pelo Ministério Público. O projeto piloto vai focar os recursos que cabem à União.

Valor: Há uma estimativa de 14 mil obras inacabadas. Desse total, quantas são
escolas e creches?

Costa: Não temos um número preciso. Fala-se em muitos números de obras paradas, até o TCU tem números diversos. Isso porque deixou-se de alimentar os sistemas ao longo dos governos Michel Temer e Bolsonaro e muitas delas foram até excluídas do sistema.

Valor: E como vocês vão achar a saída para esse impasse?

Costa: Estamos tentando identificar o número de obras paradas com algum tipo de aplicativo. Estamos vendo se a Caixa tem, se o Banco do Brasil tem, qual órgão pode ter um aplicativo com o qual, com um pequeno ajuste, a gente possa pedir aos prefeitos que cadastrem obra por obra. A ideia é cadastrarem com foto atual do imóvel, geolocalização, o valor necessário para concluir a obra, para que a gente possa reunir rapidamente isso. Porque o processo convencional de mandar ofício para as prefeituras será muito demorado, não adianta.

Valor: Esse número de obras paradas é resultado também do orçamento secreto?

Costa: Primeiro é resultado de falta de sensibilidade com quem mais precisa de serviço público, que são os mais pobres. Como alguém lança uma escola que custa R$ 6 milhões e libera para o ano inteiro 10% do valor dessa obra? Você já está dizendo que a escola vai ser construída em dez anos e que ela vai ser paralisada no primeiro ano. É uma sucessão de obras desse perfil, isso é falta de gestão pública. Por isso, quando se discute teto de gastos, eu, como governador da Bahia, insistia em dizer que mais importante do que controlar teto de gastos é controlar a qualidade do gasto público.

Valor: Como assim?

Costa: As pessoas falam em teto de gastos como se fosse um dogma, mas não vejo ninguém falar em qualidade do gasto público. O que importa não é a quantidade do gasto, mais importante é a qualidade. O que o governante fez, escola, creche, posto de saúde? Fez pavimentação para atender as bases eleitorais e na primeira chuva o asfalto foi embora. Jogou milhões ou bilhões da população na lata do lixo, mas cumpriu o teto.

Valor: Outro fato que gerou ruído no mercado foi a posição do ministro Fernando Haddad de não prorrogar a desoneração dos combustíveis e a decisão tomada foi diferente. O que achou desse episódio?

Costa: É fruto desse momento de transição e início de governo. Você não tinha os fluxos, as reuniões, as pessoas não estavam em suas salas, estava tudo improvisado. A partir de agora já temos reuniões regulares, a Junta Orçamentária será instalada na semana que vem. Se alguém tem uma posição, qual o fluxo que tem de ter para o presidente legitimar aquela posição? E o ideal é que todo mundo primeiro legitime sua posição com o presidente antes de torná-la pública. Mesmo opiniões pessoais de quem está no cargo de ministro têm que ser medidas com cuidado, senão cria-se constrangimento para o presidente.

Valor: Naquele episódio, a posição política venceu a opinião técnica?

Costa: Eu discordo dessa visão. Não foi a política preponderante, teve argumentos técnicos, se teria algum repique inflacionário. Quem sofre com a inflação? O pobre. Então é preciso ter cuidado com impacto inflacionário. Nós vamos assumir a Petrobras, então vamos adotar medidas sem interferir na autonomia da empresa, mas de estimulo ao aumento da produção. Isso vai sinalizar aumento de oferta e novas estratégias que tendem a puxar o preço para baixo. O debate foi de argumentos econômicos colocados contra outros argumentos econômicos e se fez opção de meio termo entre os dois.

Valor: Houve também o discurso do ministro Carlos Lupi defendendo uma “antirreforma da Previdência”…

Costa: Foi opinião dele, mas imediatamente observei que não era decisão do governo. Não foi o presidente nem o chefe da Casa Civil. Não acho acertada a declaração. Eu liguei para ele e disse que levaria uns extintores para ele jogar a gasolina dele fora. Claro que tem déficit previdenciário, negar isso é negar a realidade. Vamos ter um negacionista dentro do nosso governo? O déficit da Previdência pública é enorme, continua enorme apesar de todas as reformas. As previdências de todos os Estados e da União são altamente deficitárias. Outro dia eu vi uma conversa de voltar quinquênio para o Judiciário, sabe quantos bilhões isso representa de rombo fiscal? Não vejo revolta contra quem está propondo isso, por isso eu diria que a indignação é seletiva.

Valor: A votação do quinquênio ainda pode acontecer, só foi adiada no Congresso…

Costa: Do ponto de vista fiscal, você já viu algo tão catastrófico quanto isso?

Valor: Como será o novo arcabouço fiscal? Quais os pilares? Reduzir despesas de forma a se vislumbrar uma queda dos juros? Olhar para o superávit?

Costa: Não tem uma receita só. Eu acho que a gente tem que olhar para a qualidade de gasto. Obviamente interessa para o equilíbrio fiscal uma redução do juro, porque se não o custo da dívida fica muito alto e não sobra dinheiro para nada. O desequilíbrio fiscal gera mais insegurança, mais incerteza, que, por sua vez, aumenta o juro e você fica num ciclo vicioso. A gente precisa romper isso e precisa da redução de juro. E volto a insistir: nós vamos buscar a todo custo aqui garantir qualidade do gasto público.

Valor: Mas, se há preocupação com a qualidade do gasto público, por que criar 37 ministérios? Como explicar essa despesa para a população?

Costa: Estamos saindo de um período em que se aguçou a questão do racismo, da violência contra a mulher, se aguçou, inclusive internacionalmente, uma postura hostil, agressiva com a questão indígena. Então, você tem um conjunto de ministérios que tem uma função muito mais simbólica, de custo absolutamente residual perante o Orçamento da União. É uma conta que o Brasil tem que pagar para retomar a sua credibilidade internacional. Mandar uma mensagem de clara que o respeito às mulheres é coisa importante, de que a gente não pode continuar reproduzindo o racismo. Quanto custa um ministério desse? Nada perante o Orçamento e o país ganha muito do ponto de vista do processo civilizatório.

Por Andrea Jubé e Fernando Exman

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