Lula precisa de tempo para compor novo governo, diz Garfinkel

O empresário Jayme Garfinkel, acionista da Porto Seguro, diz que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisa de tempo para anunciar os nomes que vão compor seu futuro governo e que o petista não deve ceder às fortes pressões do mercado financeiro e de parte do setor privado para divulgar sua futura equipe.
“Lula está certo [em esperar]. Qualquer nome que ele for divulgar, vai ter um monte de gente contra.” O empresário também não vê problemas caso o petista Fernando Haddad seja o escolhido para comandar a pasta da Economia. “Tanto faz se for um economista ou um político. O que importa é a atuação dele. Haddad é um nome de confiança do Lula.”
Garfinkel vê vitória de Lula com otimismo
Um dos empresários que defenderam a candidatura da terceira via no ano passado, Garfinkel vê a vitória de Lula com otimismo. Para ele, demorou muito tempo até chegar a um consenso sobre o nome de Simone Tebet (MDB-MS). A disputa entre o ex-governador de São Paulo, João Doria, e o governador reeleito do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, deixou um saldo negativo no PSDB.
Na avaliação de Garfinkel, a gestão de Jair Bolsonaro (PL) não soube administrar a pandemia e também abalou a imagem do Brasil no mercado internacional. Em 2018, o empresário, contudo, votou em Bolsonaro por “acreditar na pauta liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes”.
No segundo turno deste ano, Garfinkel decidiu apostar em Lula. “Eu já tinha votado nele em 2002.”. Para ele, é preciso confiar no futuro governo. A questão da ancoragem fiscal vai ser discutida pelo novo governo e Lula não terá como gastar indiscriminadamente. A seguir, os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Como o senhor tem avaliado as atuais discussões sobre a PEC da Transição?
Jayme Garfinkel: Eu sou um dos otimistas. Vejo toda essa discussão sobre a equipe de transição e da PEC como naturais. É unânime para a sociedade brasileira ter o Auxílio de R$ 600, o que eu acho um grande avanço. Como é que vai pagar? Temos de delegar confiança para o novo governo. Há consenso de que tem de ter responsabilidade fiscal. Pode até não ser chamado mais de teto de gastos. Mas está
claro na cabeça de todo mundo que não se pode gastar desmesuradamente. Temos de olhar para frente e parar de olhar para trás.
Valor: O que seria olhar para trás?
Garfinkel: A responsabilidade dos atores do Supremo Tribunal Federal (STF), com as decisões tomadas. Se ficar nisso, a gente vai olhar para trás, não para frente. Não vamos discutir impeachment, petrolão, mensalão. O país é o mesmo, mas estamos em outro momento. A história está nos levando a um bom caminho. Estou muito contente com a situação. O Congresso novo é uma oposição ao governo futuro, quemé de esquerda. E acho que essa composição dá um equilíbrio bom. Um avanço democrático.
Valor: O Congresso mais à direita, com pauta de costumes conservadoras, seria um impeditivo para as agendas mais importantes?
Garfinkel: Vai ter impeditivos. Com a democracia, os processos são mais lentos. Eu gostaria de ver uma agenda que andasse mais rápido. Faria o país avançar. Mas percebemos o risco nessas eleições. É melhor um regime democrático que tenha essas dores de cabeça e atrasos, mas que respeita a opinião dos outros. A sociedade brasileira tem uma pauta de costume mais conservadora que a minha. Paciência. Não faz mal. A gente evoluiu.
Valor: Nas ruas ainda há movimentos de atos golpistas e uma ala aliada ao presidente Jair Bolsonaro que quer anular o resultado de parte das urnas. Como o senhor vê isso?
Garfinkel: Essa confusão nas ruas, desses caras malucos, não deveria continuar. Seria importante não fecharem as estradas. A história nos leva para um caminho equilibrado. Me faz acreditar em certa estabilidade para o Brasil, que atrairá investimentos externos. Não vejo as [manifestações com força] para se manter. É bem estranho. É fato também que podemos ter surpresas com coisas estranhas. Mas acredito que o novo governo assume e as coisas se acalmem.
“É melhor um regime democrático que tenha dores de cabeça e atrasos, mas que respeita outras opiniões”
Valor: Quais devem ser as prioridades do novo governo?
Garfinkel: Uma das prioridades é reforma tributária urgente. A distribuição de imposto é muito desigual. Por outro lado, temos uma confusão de impostos. Seria importante simplificar a vida do cidadão e também criar recursos a partir de uma divisão mais justa. Quem pode, deveria pagar mais impostos. É um caminho que se abre para o novo governo.
Valor: Qual reforma tributária que o senhor defende?
Garfinkel: Eu conheço pouco o modelo apresentado pelo Bernardo Appy, não tenho competência para dizer. Alguma coisa tem de ser aprovada. Pode ter outros projetos com boas ideias. O ideal é que governo novo torne o sistema tributário mais justo.
Valor: O que mais é importante para a agenda do futuro governo?
Garfinkel: É fundamental olhar com coragem o problema de educação. O Brasil não vai avançar se não tiver gente educada. Como é que faz? Trabalho com educação em um projeto de filantropia na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, há 31 anos. Você faz boa educação com bons professores. Tem muita gente que critica o ensino à distância, mas acho que a verdade está no meio. Deveria ter um modelo de EAD de boa qualidade, com o desenvolvimento de pedagogia social com os melhores professores para todos os alunos. Temos de criar um modelo de meritocracia para que os professores ganhem mais. Quem dá aula, gosta de dar aula.
Valor: O senhor fez parte de um grupo de empresários que deu apoio à candidatura da senadora Simone Tebet. Agora ela faz parte da equipe de transição. Como deveria ser o papel dela no novo governo?
Garfinkel: Não tenho conversado com a Simone. Eu a conheci quando ela esteve na minha fazenda, em Três Lagoas (MS), durante a sua campanha para a prefeitura da cidade. Acredito que o fato de ela estar junto com os economistas da equipe de transição, sob a coordenação do vice-presidente [eleito] Geraldo Alckmin [PSB], é importante para dar uma oxigenada necessária para que o novo governo atue com uma Frente Ampla.
Valor: O mercado financeiro e parte do empresariado estão preocupados com os futuros nomes da equipe do governo. Lula deveria ceder à pressão?
Garfinkel: Lula está certo. Qualquer nome que ele for divulgar, vai ter um monte de gente que será contra. Ele está sentindo as coisas. Deve ser difícil administrar uma equipe de transição grande com tantos interesses e grupos, embora todos estejam com muita boa vontade. Lula precisa de tempo para definir. É como numa empresa. Para fazer uma promoção, a gente gastava um bom tempo algum analisando os impactos. Imagina essa complexidade no Brasil, que ainda está bem conturbado. Acho que Lula deveria se preocupar com essas recentes declarações que fez e se poupar.
Valor: O senhor se refere às falas sobre furar o teto de gastos?
Garfinkel: As falas de responsabilidade fiscal. Depois da carta dos economistas Arminio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, Lula deu a entender que vai ouvir a opinião deles. Acho que ele está testando. O que temos de fazer agora é dar crédito. Temos de dar confiança. Me parece que foi muito equilibrado agregar nomes como Simone Tebet e Geraldo Alckmin. Lula vai nos dirigir. Imagina entrar num avião e ficar dizendo para o piloto qual a melhor rota a seguir? Calma. Vamos dar tempo ao tempo. É preciso se preservar. Ter toda confiança no futuro, esquecer o passado e ajudar para que eles atuem bem”
Valor: Como o senhor vê as discussões sobre Fernando Haddad ser indicado para
comandar o Ministério da Economia?
Garfinkel: Quando Antonio Palocci assumiu no primeiro mandato, eu pensei qual seria a razão dessa indicação, uma vez que ele era médico e prefeito de Ribeirão Preto. O que ele entende de economia? No governo Itamar [Franco], foi o Fernando Henrique Cardoso. E ele liderou a equipe do Plano Real. Se for um economista ou um político, tanto faz. O que importará é a atuação dele. O Haddad é um nome de confiança do Lula e um político superexperimentado. Eu não sei julgar. Vai depender da construção que o governo vai fazer. Não é só o ministro da Fazenda, é a política em volta e os técnicos que vão compor a equipe. Tem de ter uma base técnica. Ele poderá privilegiar alguns economistas liberais na equipe do Haddad ou de outra pessoa.
Valor: Como o senhor avalia o fogo amigo de pessoas do PT em relação aos futuros
nomes do governo?
Garfinkel: Vejo como um problema. Qualquer fogo é contra o interesse do país. Especialmente com essa transição tão delicada. É preciso se preservar. Ter toda confiança no futuro e esquecer o passado. Se for olhar no ambiente político, sempre vai ter uma crítica. Esquece o passado e vamos ajudar para que eles atuem bem.
Valor: No ano passado, o grupo de que o senhor participava estava engajado em defender uma candidatura de terceira via. O que deu errado?
Garfinkel: Naquela ocasião, a gente queria um governo equilibrado que não fosse radical nem de esquerda nem de direita. O Lula ganhou as eleições e teve o apoio da terceira via. Nós achamos que Simone Tebet representou bem esse movimento. O ex-governador de São Paulo João Doria também poderia ter contribuído. Foi uma pena a disputa entre Doria e Eduardo Leite (PSDB-RS). Nenhum deles conseguiu se firmar e essa divisão do PSDB foi ruim. Todos os candidatos que se apresentaram naquela época, incluindo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (União Brasil) poderiam ser viabilizados. Mas o mundo dá voltas. Leite se reelegeu governador do Rio Grande do Sul. Esses outros nomes podem ressurgir no futuro. Temos agora Lula na liderança e ele é quase um mito. Com o percurso de vida dele, Lula já passou para história, mas pode ser um grande nome do Brasil do século XXI. Gostei muito do primeiro discurso que ele fez sobre governar para todos os brasileiros. O pessoal que apoiava a terceira via buscava uma gestão mais liberal. Para mim, liberalismo é o equilíbrio do possível na economia e do necessário no social.
Valor: A agenda liberal do ministro Paulo Guedes agradou muito aos empresários e a Faria Lima.
Garfinkel: Eu esperava que ele fosse mais liberal quando ele assumiu pelo seu histórico. Esperava também mais reformas, privatizações e ações mais ativas, mas o governo se perdeu em pautas malucas.
Valor: Mas, em nenhum momento, Lula sinalizou que vai prosseguir com as privatizações.
Garfinkel: Isso é uma das coisas que vamos precisar ter paciência. Me parece que hoje ele deve seguir o conceito de concessões, que avançou no governo Dilma Rousseff (PT). Acredito que a sociedade brasileira avançou no sentido de ser menos ideológica e de ser mais racional. Se funcionar e as empresas continuarem [na mão do Estado], o importante é que tenha uma economia sadia. É importante fazer os programas sociais, mas ter a lógica de onde vem o dinheiro. E acredito que o governo está preocupado em realizar isso.
Valor: Os empresários do seu grupo deverão continuar atuantes daqui para frente?
Garfinkel: Eu nunca vi, nessa minha longa vida, tanta gente preocupada em tentar ajudar. Todo mundo preocupado com o país.
Valor: O que mudou?
Garfinkel: Eu não sei o que mudou, mas foi único. A história vai dizer e isso ficou. Acho que vai ser o início de outra coisa, que é a reforma política. Há um grupo maior da sociedade participando dessas discussões. É resultado de um amadurecimento. Pude ver isso nos diversos grupos de WhatsApp, inclusive do pessoal da minha fazenda, que defendia seus candidatos. Talvez essa revolução na vida cívica tenha crescido com as redes sociais. O lado bom são essas participações. O lado ruim são as “fake news”. Com o tempo, espero que isso seja regulamentado.
Valor: Como?
Garfinkel: Os Três Poderes terão de trabalhar para evitar a propagação da mentira. É horrível. Um amigo de infância me procurou recentemente porque estava com medo do Lula sequestrar a poupança dos brasileiros. Perguntei de onde ele tinha ouvido isso e disse para ele que era preciso checar as informações e buscar fontes confiáveis. Expliquei que isso era “fake news”. O ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está tendo um papel importante nessas discussões.
Valor: Moraes e outros ministros do Supremo Tribunal Federal têm sido alvo de críticas de bolsonaristas.
Garfinkel: Acho que as discussões sobre o evento do Lide, em Nova York, e a questão do Lula ter usado o jatinho do empresário José Seripieri Júnior [dono da QSaúde ], poderiam ter tido outras soluções. Não saberia, contudo, dizer quais. É difícil. Por outro lado, os ministros têm coisas importantes a dizer. Acho que não temos de criticar tanto e dar crédito para todo mundo. Vamos cooperar. Não tem sociedade que funcione com todo mundo contra todo mundo.
Valor: Qual sua expectativa para gestão de Tarcísio de Freitas no Estado de São Paulo e as indicações de aliados de Bolsonaro no futuro governo dele?
Garfinkel: A imagem que eu tenho de Tarcísio de Freitas [Republicanos] é de um cara competente e um bom gestor. A gente não sabe do futuro. Também não sabemos qual vai ser a postura do Bolsonaro na política brasileira depois que ele sair da Presidência. É um mistério. Tarcísio pode sofrer influência [dos aliados de Bolsonaro]. Por outro lado, vai ter de tocar o dia a dia.
Valor: Qual o balanço que o senhor faz do governo Bolsonaro?
Garfinkel: O país perdeu muita oportunidade. Ele não soube conduzir bem a crise durante a pandemia e deixou o país numa posição internacional difícil. Em poucos dias, Lula nadou de braçada no exterior.
Valor: O senhor disse que Lula é quase um mito, mas Bolsonaro é visto dessa maneira por seus eleitores. É ruim ter governos populistas?
Garfinkel: Acho que os eleitores de Bolsonaro, quase 50 milhões de pessoas, se identificaram com um lado ruim dele. Não dá para acusar o presidente de ser incoerente. Ele sempre foi igual. Falava barbaridades como deputado e também como presidente. Nesse aspecto, torço para que os políticos não sejam populistas. É melhor ter as cores claras.
Valor: O senhor votou em Bolsonaro em 2018?
Garfinkel: Sim. Acreditei na pauta liberal de Paulo Guedes.
Valor: Esta foi a primeira vez que o senhor votou em Lula?
Garfinkel: Não. Também votei nele em 2002. Ele construiu uma história. Eu o defendi porque que ele sempre respeitou as instituições e saiu com 80% de popularidade. Acho que o erro dele foi indicar a Dilma. Não gostei da gestão dela. A presidente foi muito inábil.
Valor: Muitos apostaram na derrocada do PT. O partido deverá sobreviver após Lula sair do poder.
Garfinkel: Assim como as empresas, os partidos devem pensar em sua sucessão. Começar a discutir antes. Não estou falando de discutir quem será o futuro presidente, mas quem serão os líderes do país daqui para frente. Não só o PT, mas toda a sociedade brasileira. Não teremos país viável, se não tivermos bons dirigentes. Não vai dar certo se a sociedade ver o político com desconfiança. Tem direita e esquerda. Precisamos descobrir são os melhores quadros.
Valor: A recessão que se desenha no exterior deverá afetar o crescimento do Brasil?
Garfinkel: Pode até afetar, mas temos oportunidade muito grande. Os investidores internacionais que olham o Brasil sabem que o país respeita contratos. Não dá para investir na Rússia, a China está se fechando, a Europa está complicada. O cenário externo ruim pode trazer oportunidades para nós
Valor: O senhor tem planos para investir no Brasil em 2023?
Garfinkel: Deixei o cargo de presidente do conselho de administração da Porto Seguro há três anos, que agora é ocupado pelo meu filho [Bruno Garfinkel]. Companhia de seguros sempre vai bem. É um setor necessário e há muito espaço para crescer no Brasil. Aqui na Wright, nosso “family office”, investimos em nossa fazenda e também na empresa de higiene pessoal, a Dana. De gestor de empresa de
seguros, virei fabricante de desodorantes. Dos meus projetos pessoais, acompanho os programas de educação na comunidade de Paraisópolis e, desde 2015, comecei a participar de um trabalho de recuperação no sistema prisional para que as pessoas saiam de lá com oportunidade de emprego.
Valor: Conversando com os seus pares empresariais aqui do Brasil, o senhor acredita que eles vão continuar investindo no país em 2023?
Garfinkel: As empresas vão continuar a investir no Brasil.
Por Mônica Scaramuzzo, do Valor
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