Chuva, futebol, hora do dia: como fatores aleatórios afetam decisões estratégicas

Decisões de grande importância para pessoas ou empresas são com frequência afetadas por fatores aleatórios, diz o economista Olivier Sibony, um dos autores do livro “Ruído”

Se a sua carreira vai deslanchar ou estagnar pode depender das condições climáticas, do horário em que seu desempenho é avaliado, dos resultados do futebol no dia anterior. E não é só com você que fatores aleatórios podem ser o fiel da balança: por um mesmo crime, réus podem ser mandados para a prisão por toda a vida ou saírem livres em pouco tempo; preços de automóveis usados e apólices de seguro podem ser fixados muito alto ou muito baixo sem motivo aparente; pedidos de asilo estão sujeitos a qualquer coisa que influencie o humor dos avaliadores; a partir do mesmo conjunto de sintomas, diagnósticos médicos podem variar de modos que parecem absurdos.

No contexto de decisões estratégicas, essa variabilidade pode ser um desastre, como mostram Daniel Kahneman, Cass Sunstein e Olivier Sibony em “Ruído: Uma falha no julgamento humano” (Companhia das Letras). Os três autores mostram como o ruído é um problema tão sério quanto outras formas de erro, como o viés, um problema bem conhecido nos processos de tomada de decisão. Quando um equívoco sempre acontece do mesmo modo, o viés é evidente, e se manifesta em problemas clássicos como o racismo, o sexismo e a xenofobia, entre outros. No entanto, escolhas de suma importância podem ser prejudicadas pela aleatoriedade tanto quanto pela incompetência, os preconceitos dos responsáveis ou a falta de informações indispensáveis.

Analisando casos idênticos, dois juízes igualmente respeitados e capazes chegarão a sentenças radicalmente diferentes, quando o esperado é que apliquem uma lei homogênea. E se esse não fosse um problema suficientemente incômodo, há piores: um mesmo juiz toma decisões incompatíveis entre si dependendo se a escolha ocorreu de manhã ou à tarde; se chovia ou fazia sol; se seu time de futebol venceu ou perdeu. O que vale para o sistema de Justiça também vale para o recrutamento de funcionários e a estimativa de desempenho dos mercados, por exemplo.

Nos estudos dos processos de escolha e decisão, a preocupação com o ruído é recente. Segundo Sibony, trata-se de uma “tomada de consciência”. “Para os estatísticos, o ruído é evidente. O erro como um todo se divide em viés, que é a média dos erros, e o ruído, que mede a sua variabilidade. Por algum motivo, ao longo de décadas os estudos das tomadas de decisão prestaram muito mais atenção no viés. Embora os dados sobre o ruído estivessem presentes, simplesmente não eram levados em conta. Talvez o motivo seja que ele é muito mais difícil de identificar, descrever e explicar”, afirma.

Os autores explicam o ruído por meio de uma analogia com o tiro ao alvo. Um arqueiro que sempre erre na mesma direção tem um viés, ou seja, ele erra consistentemente. Já o arqueiro cujas flechas vão para todos os lados, raramente acertando o centro, mas errando de maneiras diferentes a cada vez, apresenta um alto grau de ruído. São problemas diferentes, embora possam ocorrer juntos: por exemplo, um sistema corporativo de promoções que prejudique as mulheres ou os negros é enviesado, mas não necessariamente ruidoso. Já um sistema em que especialistas, trabalhando independentemente uns dos outros, promovem ou demitem a mesma pessoa peca pelo ruído.

O termo “ruído” é tomado emprestado da estatística e surgiu nas teorias da informação e da comunicação. No livro, é definido como “variabilidade indesejada” das estimativas ou decisões. É uma definição mais restrita do que nos campos em que se originou: na comunicação, o ruído é o sinal que não configura um significado, mas isso não significa que a mensagem não possa emergir do ruído; em muitos casos, tentativas de redução de ruído também diminuem a capacidade de receber uma mensagem suficientemente informativa, principalmente quando as condições da transmissão estão sujeitas a mudar. Ou seja, existe uma variabilidade que é, sim, desejada.

A diferença se explica pelos campos da aplicação. O ruído, no contexto do livro de Kahneman, Sunstein e Sibony, se opõe a uma finalidade precisa, em que é preciso chegar a um resultado desejado e, portanto, a clareza do processo decisório é indispensável. O caso das sentenças no sistema jurídico americano é ilustrativo. Em 1974, um estudo conduzido pelo juiz Marvin Frankel apresentou a 50 juízes americanos casos hipotéticos, enviados aleatoriamente. Outros estudos se seguiram até o início da década seguinte. Em todos eles, as sentenças e penas que retornaram nas respostas variaram de maneira tão extrema que o escândalo conduziu à aprovação de uma Lei da Reforma das Sentenças, em 1984. No entanto, um dos princípios fundamentais da maneira como o mundo atual entende a Justiça é o de que a aplicação das leis deve ser isonômica. Como é possível falar em isonomia se o fundamento de uma punição não apenas é enviesado, mas também aleatório?

Por isso, a definição usada em “Ruído” serve ao propósito de deixar de lado todas as situações em que a variação do julgamento é inevitável, necessária ou até mesmo desejável, conforme aponta Sibony. “São muitas situações desse tipo, a começar por aquelas em que estamos tentando inovar, ou quando as pessoas concorrem entre si, ou ainda quando se trata de questões de gosto, onde o desacordo é perfeitamente natural”, enumera.

Nas empresas, o campo onde o ruído provoca os maiores problemas é a área de recursos humanos, segundo Sibony, que logo acrescenta: “Mas há ruído em qualquer ambiente onde exista julgamento”. “Nos recursos humanos, por natureza, é necessário recorrer mais intensamente ao julgamento humano. Nas decisões de recrutamento, por exemplo, mas também nas avaliações e promoções, conhecemos há muito tempo a existência de sérios vieses psicológicos. Mas agora também sabemos dessa enorme variação aleatória”, declara.

“É claro que os vieses nas decisões de recursos humanos são uma fonte de erros e de injustiça. Se o recrutamento de uma empresa é direcionado, por causa de sexismo ou racismo, trata-se de uma falha intolerável. Mas se forem cometidos erros aleatórios, se as decisões são em boa medida resultado de uma espécie de loteria, também não é aceitável. É preciso tomar consciência desse problema e atacá-lo com a mesma energia”, explica.

Através das páginas de “Ruído”, é possível entrever uma parte da evolução da economia comportamental nas últimas décadas. O tema se tornou conhecido do público geral quando Kahneman, professor emérito da Universidade de Princeton, recebeu do banco central sueco o prêmio em homenagem a Alfred Nobel, em 2002, sobretudo por seu trabalho em parceria com o psicólogo cognitivo israelense Amos Tversky. Desde então, as aplicações práticas desse campo que funde a teoria econômica e a psicologia se disseminaram para a administração de empresas, a formulação de leis e o desenho de políticas públicas.

Em 2017, foi a vez de o economista americano Richard Thaler receber o Nobel, por suas contribuições à economia comportamental. A teoria mais conhecida de Thaler é a do “nudge”, ou “empurrãozinho”, que mostra como é possível induzir as pessoas a tomarem decisões melhores sem tomar medidas autoritárias como proibições. Por exemplo, uma cantina escolar pode melhorar a alimentação dos estudantes se os produtos mais saudáveis estiverem mais à vista. Sunstein é um dos coautores de Thaler: em 2008, os dois lançaram juntos uma obra de divulgação sobre o nudge. Em 2014, Sunstein publicou uma série de conferências sobre o nudge, em que se referia à estratégia como “paternalismo libertário”.

Conhecido como jurista e especialista em direito constitucional, administrativo e ambiental, Sunstein passou a se interessar nos últimos 20 anos por estudos do comportamento, particularmente a economia comportamental. Professor em Harvard, após 27 anos na Universidade de Chicago, Sunstein também é célebre por sua produção prolífica: nos últimos dez anos, publicou 18 livros, tratando de temas que vão das mentiras na política ao universo dos filmes da série “Star Wars”, e quase uma centena de artigos. Entre 2009 e 2012, na gestão do presidente Barack Obama, foi responsável pelo departamento de regulação do governo americano, quando implementou uma política de análise de custos e benefícios que bloqueou muitas iniciativas do próprio governo. Hoje, ocupa um cargo de conselheiro do Departamento de Segurança Doméstica no governo de Joe Biden e comanda um grupo de trabalho sobre teoria comportamental e ciências da saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Os trabalhos mais conhecidos de Sibony resultam dessa trajetória que faz da economia comportamental, mais do que um ramo da psicologia comportamental, um campo de aplicações práticas. O pesquisador francês, formado pela Escola Superior de Comércio (HEC) em Paris, foi especialista sênior da consultoria McKinsey & Company por 25 anos, comandando os setores de estratégia global e de varejo e bens de consumo. Hoje, é professor da escola em que se formou e da Escola de Negócios Saïd em Oxford, Reino Unido. Seu livro anterior, “You’re About to Make a Terrible Mistake!” (Você está prestes a cometer um erro terrível) recebeu em 2019 o prêmio da Fundação Manpower de melhor livro de administração do ano.

“Na minha experiência profissional, pude constatar algo que todas as organizações também vão constatar quando tentarem reduzir o viés das suas decisões: muitas vezes, o problema é muito mais de ruído do que um desvio consistente”, relata Sibony. O professor explica que os casos mais estudados são aqueles em que se sabe que tipo de erro vai ser feito. “Quando fazemos planos, o erro mais provável é claramente o excesso de confiança, não é subestimar as chances. Mas esses casos escolares são muito raros na prática. A regra geral, em uma empresa, é não saber antecipadamente que erros vão ser cometidos. Caso contrário, já estariam remediados!”

Sibony oferece o exemplo da realocação de recursos para um novo projeto. “Quanto devemos investir? De fato, existe o risco de recair no excesso de confiança, mas também existe o risco de um viés do ‘status quo’, que conduz a não tirar recursos das atividades que já existem. São dois vieses psicológicos, em direções opostas! Qual é o mais forte?”, questiona. Nesses casos, não se sabe de início se um erro vai ser cometido, nem em que direção ele pode ocorrer. “De fato, existem vieses psicológicos nessa decisão, mas seu efeito não é um viés estatístico. É um erro aleatório, imprevisível. É ruído”, conclui.

As propostas de solução apresentadas no livro passam por dois caminhos principais. O primeiro é ampliar o número de tomadores de decisão ou etapas no processo de escolha. O segundo é a formalização dos critérios, retirando o poder discricionário das mãos dos indivíduos. Em última instância, esses esforços podem conduzir à substituição dos humanos por algoritmos na tomada de decisão. Com efeito, em artigo de setembro deste ano, publicado na Rede de Pesquisa em Ciências Sociais, Sunstein chega a defender a ampliação do uso de algoritmos por agências do governo, como maneira de reduzir o ruído e também o viés. Embora atualmente haja problemas de discriminação embutidos nos algoritmos, Sunstein argumenta que seria necessário aprimorá-los para justamente combater essas discriminações.

Os autores se referem a essas medidas como técnicas de “higiene da decisão”. “São casos de higiene da decisão os procedimentos que decompõem as escolhas em uma série de passos discretos, as diretrizes para diagnósticos médicos e uma série de atitudes definidas pelas empresas”, explica Sibony. O autor chama atenção, por outro lado, para a chamada “lei de Goodhart”, pela qual uma medição, quando se torna um objetivo, pode deformar o modo como as pessoas agem, levando-as a inventar truques para fazer parecer que têm um desempenho melhor justamente naqueles pontos avaliados. “Esse é um risco para qualquer julgamento objetivo, mas não é uma razão para abdicar de todas as medições. Também devemos lembrar que se avaliamos alguém, não é só para dar uma nota, mas também para mudar seu comportamento”, aponta.

Na vida cotidiana, “ruído” tem sido o termo usado para se referir à cacofonia de informações, influências e estímulos que as pessoas recebem constantemente de suas telas, principalmente a do telefone celular. As redes sociais são um caso à parte, como lembra Sibony: “Elas selecionam a informação de uma maneira muito particular, já que estamos constantemente sujeitos a informações que reforçam o que já pensamos, muitas vezes de forma extremada, na verdade cada vez mais extrema”.

A ampliação do ruído é um resultado quase inevitável desses reforços, segundo Sibony, porque a influência social leva adiante os ruídos que se produzem nas opiniões. “Com isso, entre dois grupos que discordam ligeiramente, é de se esperar que emerja dessa amplificação uma discordância radical. É assim que as redes sociais contribuem para polarizar as crenças”, lamenta. “Para sair dessa enrascada, é claro que cada um de nós poderia fazer um esforço para buscar informações divergentes, desconfortáveis. Mas fazemos mesmo isso? Não creio. Para falar a verdade, estou convencido de que, por isso, a democracia está correndo um enorme perigo.”

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